Outros olhares sobre os alimentos qualidade Kobe beef cube

Outros olhares sobre alimentos: qualidade

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Desta vez pretendo tratar nesta coluna de um assunto potencialmente espinhoso: a qualidade dos alimentos, em particular da carne, e o que isto significa. Ou os vários significados que a “qualidade” pode ter, que podem às vezes ser até bem antagônicos entre si. Além do que, o que é qualidade para mim, pode ser algo totalmente do que é “qualidade” para você.

Nosso amigo, o Dicionário Houaiss, é sempre um bom ponto de partida para a compreensão de qualquer tema. Ele nos informa que qualidade é “propriedade que determina a essência ou a natureza de um ser ou coisa; o grau negativo ou positivo de excelência; a característica superior ou atributo distinto positivo que faz alguém ou algo sobressair em relação aos outros, virtude. O sentido filosófico de qualidade é revelador: “qualquer aspecto sensível de percepção que não possa ser mensurado ou geometrizado”.

Com relação à carne bovina, penso ser consenso que maciez seja um determinante importante de qualidade. E o que é a maciez? É algo inerente ao produto, que irá variar de acordo com vários fatores, como o sexo, idade, raça e histórico nutricional de um animal, além do corte específico de carne em questão. A regra geral quanto ao corte é que um músculo com grande atividade durante a vida do animal precisa ser forte e tem maior teor de colágeno, portanto precisará ser amaciado por meios de preparo preferencialmente líquidos e de longo tempo de cocção. Já os cortes de carne que vêm de músculos de menor atividade têm características de fibra muscular e colágeno que o tornam mais fácil de serem partidos pelos nossos dentes, trazendo a percepção de maciez. Quer um exemplo engraçado? O músculo ílio psoas menor, músculo do quadril, é o que dá origem ao famoso filé mignon, reconhecido por sua maciez e sabor delicado. Sabe qual é a sua função? É a rotação lateral das cadeiras. Como as vacas não rebolam, pelo menos até a última vez que verifiquei este assunto, dá para entender que o filé mignon vem de um músculo bem pouco utilizado pelos bovinos.

O teor de gordura entremeada nas fibras da carne, conhecido como marmoreio, também é um importante aspecto da qualidade. A gordura separa as fibras de carne, e derrete ao cozimento, tornando aquele corte mais saboroso e macio. Para muita gente uma carne de qualidade é aquela extremamente magra, sem nenhuma gordura visível (um corte de cor vermelho cereja totalmente liso e uniforme).  Para outras pessoas, o marmoreio é fundamental. Fato é que a gordura é uma das formas de expressão do sabor, pois como bem sabem aqueles que formulam (como exemplo) rações para animais, se não for adicionado algum teor de gordura na ração, o animal não a consumirá.

Para os japoneses, a carne bovina de maior qualidade e valorização é o kobe beef, uma carne extremamente marmorizada, cuja foto ilustra este artigo. A carne é produzida por animais da raça Wagyu, selecionados para maior deposição de gordura entremeada nas fibras musculares e alimentados com uma ração altamente energética. Esta carne é extremamente saborosa, delicada, macia e marmorizada. Existe uma associação responsável pelo certificado do real kobe beef (Kobe Beef Marketing and Distribution Promotion Association) que estabelece seus critérios específicos de cor e espessura de marmoreio, além de outros atributos. Apenas 3.000 cabeças podem ser certificadas como Kobe, portanto é um produto raro e caro. E de qualidade.

A suculência da carne é um outro fator importante na avaliação e percepção da qualidade. Uma carne com mais suco é mais agradável ao paladar. O método de preparo pode influenciar bastante na suculência, pois se o cozimento da carne for por longo tempo, e a carne for “furada”, por exemplo, por aquele infame garfo giratório que frita o bife, deixará o pedaço de carne duro e seco. Porém tem gente que prefere a carne bem passada, e isto é questão de gosto. Como diz uma piada antiga, “os médicos divergem de opinião quanto à carne bovina: alguns preferem ela malpassada, outros ao ponto”.

O Fäviken é um restaurante em Jämtland na Suécia (a 700 km ao norte de Estocolmo) que foi eleito o 19o melhor restaurante do mundo na lista dos 50 melhores da San Pellegrino em 2014. O chef Magnus Nilssoné considerado um prodígio, e tem uma opinião bem peculiar sobre a qualidade da carne. Ele argumenta que a carne bovina naSuécia não é algo muito interessante, e tem pouco sabor pela forma de alimentação dos animais (basicamente com grãos, dado que a região é bastante fria e fica coberta de neve durante boa parte do ano). Ele entende que a especialização dos bovinos em raças de aptidão leiteira e outras de produção de carne tornam um animal “útil” e o outro animal, nem tanto assim. Ele acha que as vacas leiteiras produzem leite durante toda a vida, enquanto o gado de corte não faz nada de útil, apenas fica parado lá comendo um monte e engordando, o que é muito ineficiente. Então ele teve a ideia de usar carne bovina de gado de leite em seu restaurante estrelado, e acha que esta carne tem sabor emarmoreio mais interessantes, pela forma como a vaca foi alimentada ao longo da vida, com um misto de pastagens e ração. Por isto, ele usa em seu restaurante “famosérrimo”apenas carne de, como ele chama, “VACA DE LEITE APOSENTADA, maturada a seco por nove meses”. Duvidou? Então assista o sexto episódio da primeira temporada do Chef’s Table no Netflix.

Diversos outros fatores como genética, idade, raça, manejo, características da carcaça, precocidade, cuidados antes, durante e depois do abate dos animais, formas de processamento, armazenamento, maturação, distribuição, métodos de preparo e cocção, apresentação e pontos de cozimento influenciam aspectos e percepções de qualidade da carne. Enfim, são inúmeros aspectos que dariam aqui espaço para uma enorme discussão a respeito das possibilidades, cuidados, aspectos técnicos e influência de cada um dos fatores no produto final. Em outras palavras, seria conteúdo suficiente para um livro, ou melhor, diversos livros que já existem sobre o tema.

Caso deseje se aprofundar mais em qualquer um dos aspectos que determinam a qualidade da carne, há vasta literatura sobre o tema. Caso deseje apenas seguir confiando em seus instintos, percepções e papilas gustativas (o que é uma ótima ideia), siga desfrutando dos prazeres da carne com os olhos, mente e boca abertos para as novas possibilidades, até mesmo para a carne de vaca de leite aposentada da Suécia. Eu, particularmente, fiquei curiosa para provar!

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Andréa Veríssimo

Médica veterinária e Mestre em Administração Rural pela Lincoln University da Nova Zelândia. Apaixonada por carne, teve na infância vivida na fazenda de gado de corte e arroz da família o início deste fascínio, que pautou sua atuação profissional na fundação do SIC – Serviço de Informação da Carne e na promoção internacional da carne brasileira, quando gerenciou o Programa Brazilian Beef da ABIEC. Muitos churrascos para europeus, asiáticos e árabes depois (foi sempre tão bom que nem parecia trabalho!), especializou-se em public affairs ao atuar na Elanco Saúde Animal e BASF Agro e FIERGS. Mãe, esposa e hoje pecuarista no sul do Brasil, além de proprietária da Avelã Public Affairs, continua adorando aprender mais sobre tudo e explicar ao mundo urbano o que é o agronegócio, esclarecendo dúvidas e contando histórias.

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